MATÉRIA DO NY TIMES SOBRE SALVADOR

Tradução da matéria do NY Times sobre Salvador

Salvador foi destaque no The New York Times mais uma vez e traduzimos a matéria para você. Caso queira ver as fotos e o conteúdo em inglês, clique aqui.

O mundo através de uma lente

CENAS VIVAS DAS RUAS DE SALVADOR, BRASIL

Depois de morar por quase meia década na capital do estado da Bahia, uma fotógrafa oferece um olhar íntimo sobre uma cidade onde o ato da celebração está indelevelmente arraigado.

No início da pandemia do coronavírus, com restrições de viagens em todo o mundo, lançamos uma nova série – O Mundo Através de uma Lente -, na qual fotojornalistas ajudam a transportar você, virtualmente, para alguns dos lugares mais bonitos e intrigantes de nosso planeta. Esta semana, Stephanie Foden compartilha uma coleção de imagens da Bahia.

A primeira vez que disse a alguém que estava viajando para Salvador, fui desencorajada a ir. Eu estava indo para o sul ao longo da costa quando uma brasileira com quem fiz amizade em uma pousada explicou como era perigoso e que eu seria roubada.

Apesar de seu aviso, eu fui mesmo assim.

Como uma mochileira solo ingênua de 22 anos, não era o tipo de mudar meus planos com base no conselho de uma pessoa. Pelo que li sobre a região, era vibrante e diferente de qualquer outra parte do Brasil. Mas, quando cheguei ao meu albergue no Pelourinho, centro histórico de Salvador e Patrimônio Mundial da UNESCO, continuei a ouvir avisos de que a cidade não era segura.

Normalmente, quando viajo para um novo lugar, tento explorar todos os cantos. Ando por becos e gosto de me perder antes de encontrar o caminho de volta. Desta vez, foi diferente. Eu me sentia tímida e sem saber para onde ir. Algumas ruas, fui avisado, eram áreas proibidas. Eu não conseguia relaxar ou apreciar a cidade.

No dia seguinte, conheci um brasileiro peculiar com uma profunda paixão pelo estado da Bahia e pelo resto do nordeste do Brasil. Foi revigorante ouvir sobre sua versão de Salvador. Tornamo-nos amigos rapidamente e ele se tornou meu guia, mostrando-me toda a cidade. Foi lindo ver o lugar através de seus olhos.

Apaixonei-me por Salvador. Muito forte – tanto que, antes que eu percebesse, meses se passaram, depois anos. Salvador se tornou minha casa por quase meia década.

Sempre quis compartilhar com os outros a versão da cidade que conheci e amei – a versão do famoso escritor baiano Jorge Amado: “A cidade da Bahia, negra e religiosa, é quase tão misteriosa quanto o mar verde.”

Fotografar aqui sempre foi uma alegria: as cores são abundantes, a luz é brilhante e as pessoas – elas são tudo. Mesmo em um país tão único culturalmente como o Brasil, o estado da Bahia ainda se destaca para mim como nenhum outro. Existem sons, cheiros, alimentos e música distintos para esta região. Quase a qualquer hora, você pode ouvir tambores nas ruas, sentir o aroma da moqueca (ensopado de peixe feito com leite de coco) ou se deparar com um grupo de capoeiristas (dançarinos da arte marcial afro-brasileira).

A cultura de Salvador deriva de suas influências africanas: cerca de 80% da população da cidade é descendente de africanos, de acordo com os números do Censo 2010.

A cidade já foi um dos maiores portos de comércio de escravos das Américas. Por mais de 300 anos, a partir de 1500, cerca de 4,9 milhões de escravos africanos foram transportados para o Brasil, segundo dados do Trans-Atlantic Slave Trade Database. Cerca de 1,5 milhão foram trazidos somente para a Bahia. Em comparação, cerca de 389 mil africanos escravizados foram levados para o continente da América do Norte durante o mesmo período.

O Brasil também foi o último país das Américas a abolir a escravidão, em 1888. Agora, apesar de séculos de repressão, tratamento brutal e trauma coletivo, a cultura africana prospera em Salvador, encontrando expressão na cultura afro-brasileira musical, culinária, artística e tradição literária da cidade.

Salvador enfrenta muitos desafios. O estado da Bahia é um dos estados com menos educação formal do Brasil. Também está empobrecido, lutando contra algumas das maiores taxas de desemprego do país. E, nos últimos anos, a desigualdade econômica cobrou um grande tributo à cidade.

A Bahia também se destacou politicamente: é um dos 11 estados, todos agrupados próximo ao nordeste do Brasil, que Jair M. Bolsonaro, o presidente de extrema direita, não ganhou nas eleições de 2018.

Sua retórica nem sempre o tornou popular entre os baianos. Em evento público em 2017, Bolsonaro disse que quem vive em quilombos – territórios habitados por descendentes de escravos, vários dos quais na Bahia – “não serve nem para procriar”.

Ele também frequentemente descartou a existência de racismo sistêmico e instituiu políticas que prejudicaram grupos marginalizados, embora sua popularidade pareça estar crescendo entre os brasileiros pobres, especialmente à luz dos recentes programas de habitação e bem-estar.

O coronavírus agravou os problemas da região. Mais de 250 mil dos 4,3 milhões de casos do Brasil foram relatados na Bahia. Mundialmente, o país é o terceiro – atrás apenas dos Estados Unidos e da Índia – em número total de infecções. Bolsonaro, que também foi infectado, minimizou repetidamente a ameaça, chamando a Covid-19 de “mísero resfriado”.

Como tem acontecido em outras partes do mundo, a pandemia afetou desproporcionalmente as comunidades pobres do Brasil. As taxas de mortalidade em favelas – bairros densamente povoados e geralmente pobres, onde vivem cerca de 13 milhões de brasileiros – têm sido significativamente mais altas do que em outras partes do país.

Saí de Salvador em 2018 e tem sido difícil assistir de longe enquanto a cidade luta contra a pandemia do coronavírus. Ainda assim, não importa os estereótipos da região – bom ou ruim, aterrorizante ou vibrante – a Bahia, eu suspeito, continuará a desafiar a lógica e a expectativa, e tenho esperança em seu futuro.

*Stephanie Foden é uma fotógrafa documental que mora em Montreal.

*Imagem de Gerd Altmann por Pixabay

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